segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O ANALFABETISMO FUNCIONAL É A ALFABETIZAÇÃO SEM LETRAMENTO


UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ - UVA
 
     
O ANALFABETISMO FUNCIONAL É A ALFABETIZAÇÃO SEM LETRAMENTO

A definição de alfabetização que a UNESCO propôs em 1958, fazia referência à capacidade de ler compreensivamente ou escrever um enunciado curto e simples relacionado a sua vida diária. Tempos depois, a mesma UNESCO adotou outra definição, qualificando a alfabetização de funcional quando suficiente para que os indivíduos possam inserir-se adequadamente em seu meio, sendo capazes de desempenhar tarefas em que a leitura, a escrita e o cálculo são demandados para o seu próprio desenvolvimento e para o desenvolvimento de sua comunidade. O analfabetismo funcional, portanto, designa a incapacidade de utilizar, de forma a interpretar correta e completamente, a leitura e escrita para fins práticos, em contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho.
Pesquisas do IBGE – que medem esse índice levando em consideração pessoas de 15 anos de idade ou mais, com o máximo de 3 anos de estudo – mostraram que o analfabetismo funcional no Brasil permanece com taxas muito altas, atingindo cerca de 30% da população brasileira.
Para a pesquisadora do Programa de Pós-Graduação do NUTES/UFRJ, a professora Nilma Lacerda, o analfabetismo funcional decorre da alfabetização sem letramento, em que as pessoas aprendem a técnica da escrita e da leitura, e não desenvolvem uma relação pródiga, produtiva, com cultura escrita. “Sem serem alimentadas por material impresso, sem incorporarem às suas vidas a necessidade e o prazer de escrever – o bilhete para um amigo, uma informação importante, uma receita que ouviu no rádio ou na televisão –, elas acabam desaprendendo, empurrando para um canto do cérebro essa nova competência que não encontrou lugar na sua vida pessoal e social”, enfatizou Nilma.
A professora acredita ser hoje o letramento um conceito primordial no ensino da leitura e da escrita. E que a solução para o problema do analfabetismo funcional poderia ser encontrada no caminho da biblioteca: “É preciso ir além de alfabetizar, é preciso letrar, atividade muito difícil de se realizar longe da biblioteca. Biblioteca escolar, biblioteca municipal, biblioteca da igreja, da casa de um líder comunitário, da casa do professor – a biblioteca que nasce do desejo da leitura de um livro, que a professora pode ler em sala, com freqüência”. Na visão da especialista em literatura, professor que lê dentro de sala de aula em voz alta, – seja textos literários, textos jornalísticos ou quaisquer outros – vai estar fazendo os alunos investigarem sentidos, o que cria a possibilidade de cada pessoa dar sua opinião e ressignificar o que ouve, o que lê; atribuindo os sentidos conforme sua vivência. “Esse professor, essa professora estará criando o conceito de biblioteca, inserindo seu aluno nas práticas sociais de leitura e escrita, varrendo das estatísticas brasileiras o analfabetismo funcional”, ressaltou Lacerda.
 O ANALFABETISMO FUNCIONAL
 Íntegra do texto “Um Saber Muito Novo”, de Nilma Lacerda)


UM SABER MUITO NOVO – A LETRA E O LIVRO NA VIDA DE TODOS    Nilma Lacerda
Tantas perguntas sobre alfabetização, tanto investimento em metodologia, tanta angústia pelos resultados alcançados, situados sempre aquém de uma expectativa institucional e pessoal, e pouca atenção ao fato de que no campo da leitura e escrita a humanidade lida com um saber muito novo, que vem sendo gerado há apenas seis mil dos trinta e cinco milhões de anos – como querem uns, dez milhões, como querem outros – das espécies do gênero Homo, entre as quais o Homo sapiens sapiens, onde nos incluímos.
Tomemos a vertente dos dez milhões de anos. Se quisermos estabelecer uma proporcionalidade, o tempo da escrita e da leitura corresponde a seis centésimos (0,06) da existência da espécie humana, e, numa proporção muito menor, teríamos os quinhentos e cinqüenta anos da idéia de livros para muitos, quando Gutemberg aperfeiçoa a invenção da imprensa. No Brasil, tem cerca de quarenta anos a idéia de que todas as pessoas devem saber ler e escrever – é um conhecimento novo, novíssimo, esse em que estamos nos movimentando.
Com a humildade e alegria de uma inauguração, é que precisamos nos ocupar de produzir este saber novo: o direito de saber ler e escrever para todos os brasileiros. Leitura e escrita são tecnologias, tecnologias do eu, tecnologias de ponta: o acesso a esses bens simbólicos precisa estar assegurado a cada indivíduo em nosso país. Ler e escrever produz riqueza. Riqueza física, material: as nações ricas são nações de leitores, e de leitores que escrevem – escritores, portanto.
Processo autoral, escrever é um ato que requer uma exposição do sujeito e tem sido, ao longo da História, posse das elites econômica e social, que procuram monopolizá-lo para si, dificultando a outros segmentos a apropriação dessa competência.  (....)
Nos vários idiomas consultados, o par leitor/escritor sofre uma dissociação artificial e perversa, assinalando típica reserva de mercado, na qual aquele que lê não se torna sujeito da escrita. Nesse contexto, parece natural a formulação do ato de escrever como prática distanciada do cotidiano, mesmo no caso de profissionais cujo desempenho necessita da escrita para o próprio projeto de trabalho: “Se escrever é tarefa de artista e eu não sou escritor, como escrever minha prática pedagógica?” – e isso se estende para a vontade de uma vida melhor, planos para o futuro e vontades políticas.[1]
No processo de formar leitores e escritores, muitas vezes não se leva em conta o saber de um e outro lado, as diferenças de conhecimento estabelecidas por parâmetros diversos de tempo e espaço. O lugar da escrita deve ser esse lugar em que os saberes diversos se tocam e se trocam: como num romance, em que o saber do camponês encontra espaço numa descrição da colheita; o saber do gari cabe numa reflexão sobre o consumo, o da cozinheira sobre a origem dos alimentos, o da professora sobre as dificuldades e alegrias nas relações com os alunos. O lugar da leitura precisa, por sua vez, ser esse lugar que permita reflexões intensas e transformadoras, capazes de causar deslocamentos, permitir que uma situação seja vista através de pontos de vista inusitados. Abrir um território de saberes comuns para o aprendizado da leitura e da escrita é essencial para o sucesso do projeto. E um território em que o educador reconheça, humilde, que sabe algumas coisas, não todas. Como o jovem que trata a mãe com ironia, pelo seu desconhecimento de informática: “ – Você não sabe salvar um arquivo? É tão simples, todo mundo sabe.”, e, precisa reconhecer, logo depois, seus próprios limites: “ – Você não sabe como fazer para cozinhar um ovo, meu filho? É tão simples, todo mundo sabe.”
Tempos diferentes, espaços diferentes geram saberes diferentes que precisam se intercambiar na construção deste projeto, comum e novo, em que nos empenhamos.
Uma das questões centrais do humano, o tempo é um elemento central no processo de alfabetização. Retomando a sabedoria do Eclesiastes, um dos livros da Bíblia, há um tempo de aprender e um tempo de exercer o que se aprendeu, um tempo de aprender e um tempo de esquecer – se não foi exercido, aquilo que se aprendeu. Ensinar uma pessoa a cozinhar e privá-la dos alimentos a serem preparados é determinar o esquecimento da ciência que a ela foi dada. Mais tarde, ao ter que preparar um arroz, ela deve se lembrar dos ensinamentos que recebeu, mas cheio de lacunas: o arroz vai ficar insosso, ou salgado; cozido demais, ou meio cru; empapado ou queimado. Aprender sem exercer é perder o tempo no esquecimento.
Alfabetizadas, mas sem material de leitura, as pessoas acabam esquecendo rapidamente aquilo que tanto esforço custou a tantos. Aprender a ler não é – como se pensa com freqüência – aprender a decodificar. Aprender a ler é compreender o que um texto expõe, é alcançar o sentido de um texto escrito. E isso está muito além do código, se insere antes numa rede de relações fornecida pela cultura escrita. Por isso, se emprega hoje o termo letramento, que, mais do que alfabetização, significa a competência de lidar com a cultura escrita.
Não é um processo natural, lidar com a escrita. Livros e outros impressos não são objetos da ordem do natural; nossa relação com eles não se estabelece num impulso natural, ou imitativo – como aprender a andar. Produção cultural, bastante sofisticada, da sociedade humana, a cultura escrita exige atitudes elaboradas. Não se aprende a ler como se aprende a falar. O ensino da leitura e da escrita exige mediação, e mediação qualificada.         Nessa mediação, o sentido e a finalidade do ato de ler e de escrever deve se estabelecer com clareza e precisão. As autobiografias de escritores costumam ser um espaço privilegiado para reflexão e análise da construção desse sentido, o que inclui o material oferecido para a alfabetização. As cartilhas ou livros didáticos comumente usados para alfabetizar artificializam o texto escrito, empregando fórmulas rígidas em que a presença da letra costuma vir descontextualizada, isto é, fora dos lugares em que o sentido pode ser produzido. Em Infância (1945), Graciliano Ramos (1892-1953) evidencia o quanto um material inadequado pode obstar o aprendizado da leitura e da escrita.
         ...meti-me na soletração, guiado por Mocinha. (....) Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. (....) “A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.”
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta.[2]
Autora portuguesa contemporânea, Teolinda Gersão (1940), tem – na pequena obra-prima que é Os Anjos (2000) – a descrição das humilhações a que narradora é submetida, por não conseguir repetir as fórmulas silábicas que a professora apresenta a ela, aluna de freqüência irregular às aulas, pois precisa tomar conta da mãe doente; desprezada a cartilha, é no almanaque que a menina vai se alfabetizar.
            O primeiro (presente do avô) tinha sido o almanaque. Interessava-me cada vez mais pelas figuras, ficava a olhá-las até as saber de cor. Algumas tinham letras embaixo, o meu avô apontava-as com o dedo. As letras diziam o mesmo que as figuras. Assim, por exemplo, se ele mostrava: O cão do Belarmino, embaixo as letras repetiam: O cão do Belarmino. Podiam olhar-se as figuras ou as letras, eu preferia sempre as figuras.
Um dia olhei uma figura, e as letras embaixo, e novamente a figura. E então as letras, quando tornei a olhá-las, correram a juntar-se em molhos. Cada molho era uma coisa, um molho era um cão, outro molho era uma casa. Fiquei vermelha de supresa e senti-me quase sufocar. O meu avô riu-se, e eu vi que agora não podia voltar atrás: não conseguia olhar as letras sem ler o que diziam.[3]
O momento em que a menina percebe dominar o código é de tal intensidade que ela se sente sufocar. A partir daí, o caminho – para a frente, sem retrocesso – revela o sentido que pulsa no texto. Impresso no almanaque que o avô dera a ela de presente e que contém muitos outros textos, vão todos eles permitir a ela a posse das histórias, a escrita da sua história. Da mesma forma, Graciliano, há dois anos na escola e sem ter aprendido a ler, se alfabetiza no fundo do quintal, num livro de ficção, lendo sozinho os sinais escuros na página branca, como os astrônomos lêem, no céu, sinais de mundos distantes: “Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes.” [4]
O que as cartilhas não deram a um e a outro, deram o livro de ficção e o almanaque, textos que estavam ao alcance da mão, fora da escola. Por que não deve a escola apropriar-se desses textos para o tempo de exercer da letra? E não ficaríamos só nesses, mas nos textos de jornais, revistas, receitas culinárias, receitas médicas, propagandas de supermercado, contas de luz, água ou telefone, simpatias, letras de música, página de Internet, caderno de pensamentos: todo um mundo de cultura escrita viva, circulando, propiciando acesso ao patrimônio cultural da humanidade, à informação, fornecendo o sentido para a leitura, o sentido para a escrita: compor os próprios pensamentos, registrar sua receita ou simpatia, pedir informações à revista, manifestar opinião quanto à matéria publicada em um jornal, escrever ao escritor, à autoridade, fazer uma reclamação, escrever sobre uma experiência ou sobre os sentimentos.
O adulto ou jovem que se alfabetiza precisa – sem nenhuma dúvida – letrar-se, habilitar-se ao uso da letra, usufurir das riquezas e responsabilidades que dela advêm, sem que seja feita a esse adulto, a esse jovem, qualquer restrição ao tipo de uso que quiser encontrar para sua leitura, sua escrita: as origens da escrita não apresentam nobres ideais, mas a prosaica função do registro comercial. E essa história segue, numa via constante de apropriação, com as pessoas do povo pegando para si aquilo que não estava destinado a elas. Clássicos da literatura são adaptados e vendidos por caixeiros-viajantes no interior da França do século XVII e XVIII, meninos pobres cortam o território suíço, no século XVI, enfrentando frio, fome e peste para ir estudar onde estavam os mestres, um menino mulato e pobre burla, no Rio de Janeiro, a sociedade estratificada do Segundo Império para construir um monumento literário.
Nesse saber novo que está sendo criado, e que compreende a posse pelo aluno e pela aluna de uma cultura escrita e do usufruto desse patrimônio, é indispensável que também o professor ou a professora esteja inserida ou inserido nessa rede, o que parece óbvio – e não é. Mudanças sociais, tempos de crise, desvalorização pecuniária da carreira do magistério criam novos lugares de proveniência do professor e da professora, lugares em que nem sempre essa cultura escrita está presente.
A biblioteca é um dos principais espaços onde ususfruir da cultura escrita. Fazer acontecer a aula na biblioteca, freqüentar as bibliotecas próximas, cobrar do poder público a manutenção delas e, dentro da escola, empenhar-se para uma biblioteca escolar viva são algumas das estratégias que inserem professores e alunos numa dinâmica de letramento, de tempo de não-esquecer, tempo de fazer sentido – como se pode verificar em inúmeros trabalhos que constatam a força da biblioteca na vida de jovens leitores.


                                                  Mas não esquecer que essa biblioteca tem início na sala de aula, com o professor que lê – em voz alta – para seus alunos o livro de literatura, o poema, a notícia de jornal, retornando a um tempo em que o leitor alfabetizado partilhava com o auditório não-alfabetizado os enigmas, as informações, a beleza de um texto escrito. Recriar esse tempo, instituir outros leitores – a rede vai-se fazendo e escapa a seus criadores, estende-se no mundo, sustenta esse projeto e saber tão novos: a letra e o livro na vida de todos.

[1] LACERDA, N. G. (2000) p. 30-1. [2] RAMOS, G. (1986) p. 109. [3] GERSÃO, T. (2000) p. 27. [4] RAMOS, G. (1986) p. 203

Bibliografia
ALVES, Nilda; GARCIA, Regina (org.) O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
CECCON, Claudius; PAIVA, Jane (org.) Bem pra lá do fim do mundo; histórias de uma experiência em Riacho Fundo, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. [Niterói]: CECIP, 2000.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. 2. reimp. São Paulo: UNESP, Imprensa Oficial SP, 1999.
GERSÃO, Teolinda. Os anjos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.
LACERDA, Nilma Gonçalves (cons.) Casa da Leitura: presença de uma ação; filosofia e perfil da Casa da Leitura,
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares.. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
RAMOS, Graciliano. Infância. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.
SOARES, Magda. Letramento – um tema em três gêneros. 2. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Pedagogia-Educação

"Me movo como educador, porque primeiro me movo como gente" Paulo Freire